Bagunçar o gênero

Laerte

Laerte

Ellos dicen representación. Nosotros decimos experimentación. Dicen identidad. Decimos multitud. Dicen domesticar la periferia. Decimos “mestizar” el centro. […] Dicen disforia, transtorno, síndrome, incongruencia, deficiencia, minusvalía. Decimos disidencia corporal (1).

E Fazer bagunça com o gênero é o que disse Miriam Chanaiderman, a diretora do documentário De gravata e unha vermelha, apresentado no 19º Festival Internacional de Documentários É tudo Verdade.

Este trabalho mostra um conjunto diverso de personagens que, de maneira muito pessoal, constroem a própria identidade a partir da escolha de gênero. Por tanto, fazer bagunça com o gênero significa produzir outros modos de vida a partir de novos valores, de vínculos interpessoais e da criação de redes de afeto e cuidado. O filme dá conta dessa pluralidade de sujeitos múltiplos capazes de criar vidas habitáveis sob a opressão de uma sociedade heteropatriacal.

Cada depoimento é uma demonstração das possibilidades infinitas na criação e experimentação do gênero. De Ney Matogrosso (criando uma imagem dificilmente classificável como ferramenta para zombar à censura durante a ditadura militar) até o designer de moda Dudu Bertholini (o qual se considera um gender fucker), ou Bayard (Ex-Dzi Croquettes) ou também, Letícia Lanz (a presidenta da Associação Brasileira de Transgênero).

Algumas das expressões artísticas têm um componente lúdico-humorístico, como é o trabalho do cartunista Laerte. Em face àquilo diferente e novo, sob a moral de um sistema cultural, o humor dela age como uma forma de insurreição e de provocação.

Eduardo Laurentino é designer de chapéus e mora em São Paulo. A vestimenta dele me lembrou o New Look que Flavio de Carvalho usou na Experiência nº 3, em 1956. Para Flavio, o traje do homem ocidental era incómodo e não adaptado ao clima tropical e à vivência metropolitana (2). Na série de artigos sob o título A Moda e o Novo Homem, afirmou que a roupa é uma “defesa anímica” que “protege e permite a ousadia”.

E essa ousadia foi a que levou a Flavio para um passeio com o traje tropical na Experiência nº3, vestido de saiote, com uma blusa de náilon vermelha de estranho corte, sandálias de couro, meias de bailarina e um chapéu de pano transparente. Eis a roupa do futuro. “Uma tentativa de revolução na indumentária masculina”, segundo a manchete do Diário (3). Uma forma de subverter os elementos culturais da divisão do gênero e questionar as convenções sociais da época.

A multidão acompanhou ele durante o percurso. O pessoal agitado berrava “ridículas são nossas gravatas…”, “esse deve ser o tal smoking de baiano”… Segundo Flavio, a roupa deve ser multicolorida para o homem deixar de ser tão obtuso, tão burro. Aqui já apontava para uma crítica aos parâmetros da masculinidade.

No documentário, Eduardo sai à rua e é interpelado por um passante. Ele faz referência à Experiência nº2 do Flavio, considerada uma das primeiras performances na história da arte brasileira. Esse performer antropofágico caminhou no sentido contrário na procissão de Corpus Christi visando estudar o comportamento da multidão.

Além de um performático precoce foi cosmopolita, questionador e um libertário. No IV Congresso Pan-americano de Arquitetura (1930) apresentou uma tese bem curiosa: A Cidade do Homem Nu. O homem do futuro precisava apresentar-se nu, sem tabus escolásticos, livre para o raciocínio e o pensamento. Apresentar sua alma para pesquisas; procurar a significação da vida (4).

O projeto urbanístico de Flávio era organizado em zonas diferenciadas concêntricas: o Centro de Ensino e Orientação do Homem ou o Centro Hospitalar e o Centro da Erótica, um laboratório onde se agitam os mais diversos desejos (5). Ele compreendeu a sexualidade como uma experiência continuada, sem restrições, nem sacrifícios. O homem nu descobriria novos desejos sem repressão e projetaria a energia e o libido livremente. Todo um projeto urbanístico utópico tropical!

Aliás, os diversos personagens do documentário admitiram ter grandes dificuldades nas relações sexuais. Sabemos que a sexualidade é um elemento fundamental na construção de nossa subjetividade, mas também é magnificado. Frente à sociedade, parece quase uma obrigação ter que lidar com isso

Pensando nisso, me lembrei da primeira exposição do projeto El Palomar, Lo más revolucionario hoy es ser casto o tener una vida sexual frustrante (Barcelona, 2013). Os artistas MarioKissme e R. Marcos Mota realizaram uma crítica ao consumo sexual cujo engano é fazer sentir aos cidadãos mais livres.

Após do visionado, tivemos o prazer de conversar com Miriam Chanaiderman e João Nery. Ele apontou para algumas das dificuldades no cotidiano da comunidade transexual. Por exemplo, a distribuição binária nos sanitários públicos, a vestimenta, as questões relativa à saúde, entre outras.

João é o primeiro transexual brasileiro. Foi operado pela primeira vez em 1977. Apesar de que a operação não o fez mais homem, como afirmou, foi o início de todo um percurso vital muito complicado. Tem publicado as memórias no livro Viagem solitária – Memórias de um Transexual 30 Anos Depois.

No ano passado começou a tramitação de um projeto de Lei de Identidade de Gênero do deputado Jean Wyllys (Psol-RJ) e da deputada Erika Kokay (PT- DF). Ela estabelece o livre desenvolvimento da pessoa conforme sua identidade de gênero e ser identificada dessa maneira nos instrumentos que acreditem sua identidade pessoal a respeito do/s prenome/s da imagem e do sexo com que é registrada neles. Essa lei já foi aprovada na Argentina. Vamos torcer pela aprovação aqui no Brasil. Isso seria um grande avanço em matéria de liberdades democráticas.

Na atualidade, os temas clássicos do feminismo tais como o aborto, a violência, a sexualidade, o trabalho doméstico e o acesso ao mercado laboral são ultrapassados pelas problemáticas que atualmente trabalham os movimentos transfeministas: a construção da subjetividade e da corporalidade, a pornografia, o trabalho sexual, a patologização da transexualidad…

As lutas transfeministas têm superado as diferenças de raça, sexualidade e classe social para assumirem (e celebrarem) a heterogeneidade. O sujeito mulher é excludente e já não dá conta das discussões relativas aos gêneros. Agora, um dos desafios na tarefa crítica dos transfeminismos é produzir as condições de possibilidade para atingir mudanças nas esferas social e política.

NOTAS

1. Preciado, B. Decimos revolución. Prólogo de Transfeminismos. Epistemes, fricciones y flujos. Tafalla Nafarroa: Txalaparta, 2013.

2. Robert Moraes, A.C. Flavio de Carvalho. O performático precoce. São Paulo: Brasiliense S. A. 1986.

3. Ibid,2.

4. Carvalho. F. Diário da noite. 01/07/1930.

5. Ibid, 4.

 

This entry was posted in No país tropical. Bookmark the permalink.